quinta-feira, 27 de outubro de 2011

O dia em que Lilith dançou

Lilith me ensinou: a sensualidade subverte o sentido. E isso é bom.

 Adamah feita, não das costelas de um homem, mas da mesma terra que o moldou, filha ciente do mesmo espírito criativo  que imaginou Adão, Lilith já conhecia a misteriosa raiz da mandrágora e experimentara místicos deleites quando Eva ainda exalava um mal cheiro fetal. Nesta época, Lilith intuia também que no ventre da moréia havia  o primeiro embrião de sereia e que uma semente de tempestade podia gerar mais frutos belos que mil pedras adormecidas.

Sobre a poderosa Lilith, resta dizer ainda que foi vítima apenas dos esfoços - que sempre julgou um tanto rídiculos – de difamação de uma cultura que ainda viria, centrada no poder do macho-pai, um tanto preguiçosa e infantil, sedenta de narrativas apaziguadoras. Nas brincadeiras de saber desses homens (brincadeiras de velhos e não de crianças, as que podiam brincar mentes que careciam de energia e vitalidade ) , a deusa do corpo e da sexualidade virou o mal. Quando soube disso, Lilith apenas sorriu.

Bom, e o sentido?
Lilith contorceu seu corpo provocador de uma experiência de potência, animada por um sopro estelar.
...
Lilith apenas dançou

sexta-feira, 21 de outubro de 2011

Samba vadio

Num dia de vênus
ouvi o grito de prazer da passarada
com a carícia do vento
vi o estremecer da pedra
ao toque do sol 
e o perfume da violeta
embriagada com a seiva correndo em seu caule

Num dia de vênus
um cantar baixinho
me disse assim
que a vida é gozo e passagem
movimento incessante
pássaro, violeta e também pedra

Num dia de vênus
a Terra dançou um samba vadio
e me embalou.

terça-feira, 16 de agosto de 2011

Nossa Senhora dos Prazeres
me iniciou em seus Mistérios
Mãe da Vida, Mãe de sim
Mãe dos pêlos e dos bueiros

Mãe do corpo
De cheiro de noite quente
Sua benção - mãe divina - pelo gosto de amar com amor de bicho
Claro como a Lua Cheia         

Mãe das Nove Mil Alegrias e algumas outras tristezas
Seu  êxtase é paz das cigarras
E paz inteira de quem sabe se entregar ao gozo.

Nossa Senhora, a dos prazeres
me deu o instante mágico e a eternidade dos deuses
para ver cair, vazia,
mais uma tarde qualquer.

quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Você me diz que sou flor
E acha que me apanha para o enfeite de seu ordenado jardim
E eu me calo, menino, no meu abismo
De flores selvagens
Das grandes e soberanas flores na mata
Das flores escuras.

E meus olhos e meus lábios e minha pele te dizem  sim
E pela verdade, nada mais podem dizer
no abismo-palavra de nossos corações.
É que o labirinto-mistério desse coração fêmea
está longe, mas tão longe de ser  a flor conhecida que seus olhos podem ver.

E meus olhos e meus lábios e minha pele te dizem sempre sim
Por razões, meu menino, completamente diversas às que pressupõe
Seu olhar reto e sua juba de rei
É que seu dourado brilha
Como seu dourado brilha...

Um coração de leoa estremece sem porquês. 

sábado, 23 de julho de 2011

Do ar ( e outros demônios )


Entre os espaços do meu amor
Corre veloz
Um ar menina
Fresco e sem perfume

E que convida sereno
Ao vôo festa solitária
Dos espíritos livres, dos espíritos alegres
Em seu mundo perigoso
De liberdade vitoriosa e ofensiva

Se equilibra elegante na corda tensa
acima dos prédios e dos carimbos,
meu amor coragem
Para poder morder a vida sem culpa
Com pés descalços na terra 

quarta-feira, 6 de julho de 2011

Cotidiano

Hoje o anjo da aventura veio me visitar
e o vento de suas  asas terríveis
fez voar os meus papéis e o meu silêncio,
emaranhou os meus cabelos
e quebrou minhas porcelanas.

Subi na montanha mais alta,
tentando observar as ruínas de casa,
mas ele me achou de batom vermelho e nua
e sua gargalhada medonha
me fez rolar de volta ao chão.

Dançando seu butoh tal anjo  –sempre criança e velho conhecido – sussurrou a plenos pulmões:
-Não vim trazer a paz, mas a espada!
E me deixou serena
E Mãe
de mais um alvorecer.

sexta-feira, 1 de julho de 2011

Da série ... o deus das miudezas





Ando sentindo uma alegria moleca que é quase  triste
De gosto de  chuva miúda
de vento no rosto
E frágil como o acordar de um sonho bom

E que tem cheiro de paz sem porquê
E que é tão velha e contrária ao mundo ordenado
Que não acha nem língua prá se dividir
( Talvez numa xícara de chá ... )

O feminino que ri

segunda-feira, 25 de abril de 2011

O deus das miudezas

Ando sentindo Deus nas miudezas
e em tudo aquilo que é finito, fugaz
e de bem com a morte.

(Cruzei terras e pulei mares
e cravado no peito
- estranha equação de permanência -
trago a brisa
o café quentinho de uma tarde de sol
e um breve suspiro)

E o diabo?
Bom, esse - se existe -
continua é morando na banalidade...

quinta-feira, 14 de abril de 2011

Mais uma noite na febre da Terra
No ponto em que minha história se cruza com o destino do mundo
Sina doida e doída de alma sem bordas
Que só pode florescer sendo aquilo que é
Transpassada
Água que reflete...

Eletricidade do ar
Me machuca mais que virose
O que existe hoje estremece
Antevendo
a desordem do destino que se dá num instante de cochilo
Um tempo perigoso
e de grande liberdade

Respira ( ridículo profeta fora da era...)
Para não gritar nas ruas
Você sente o andamento frenético da roda?
Você sente que não dá mais para adiar?
 (O quê? O quê mesmo?)
No cabo de guerra entre o frescor ágil, porém sem forma e a força de músculos - tão desenhados - que resiste
Meus nervos cachoalham
Tentando aprender a dança
De um tempo que esperava por mim

sábado, 9 de abril de 2011

Dia de Lilith

Hoje eu abri minha caixa de milagres e fiz  uma cama de ervas, venenos e cipós para alcançar os querubins e mergulhar no caos anterior ao nome das coisas...

quarta-feira, 6 de abril de 2011

Umbigo do mundo

Hoje levantei de um sonho antigo
Como quem, de repente, acorda tarde
E já perdeu todos os compromissos
E já não se lembra mais quem é

Um gosto de fruta madura na boca
No corpo, eletricidade e sangue de uma vitalidade arcaica e ainda por vir
Correnteza de todos os fluxos
E todo o giro da Terra, formigueiro gigante e incansável,
Nas sinapses dos meus nervos acesos

De onde vem a música e o grito jamais ouvido
Fagulha ligeira e volátil
Da vida em estado de arte?
Como seduzí-la, domá-la,
E tal como amante fogozo
torná-la dócil à permanência ?

Lá fora, buzina dos carros e o telefone que toca
Lembrando que o dia já chama
Para o mesmo caminho pelas mesmas ruas
Que levam cada homem para o igual destino

Eu cavalgo feroz meu caminho sem placas
Que leva a ponto nenhum
Onde todo o movimento cessa
Uma tal encruzilhada no umbigo do mundo

domingo, 3 de abril de 2011

Compartilhando trecho aleatório da nova peça, ainda sem título



Lilith -Eu sabia que você viria...
Nio -?
Lilith -Hoje eu tive um sonho, de uva.
Nio -Uva?
Lilith -Não das verdinhas, não... mas daquelas roxas, pequenininhas e bem doces. Sabe aquela fruta madura, madura, em que uma gotinha de mel já rompeu a casca e se mostra assim, sem vergonha nenhuma, prá quem quiser ver?
Nio -Sei...
Lilith -Foi assim meu sonho... eu era uva, o vinho e aquele que bebe. E também a videira, em plena expectiva, visão de cálices vermelhos, de êxtase e dor, do mistério da entrega. Na carne,  o sofrimento da uva pisoteada, que se dá aos pés e pesos que a machucam e ali agoniza, sangra. E na ação do tempo, o álcool, pai da eterna juventude, elixir dos deuses ...Brota.
Ai, brotinho de uva...
Nio -Ai...
Lilith - Você sabe o que isso significa? Eu não sei e foi comigo!
Nio -Eu te amo!
E aquilo que eu nem sabia existir, pulou da minha boca, prontinho. E mais um monte de coisas que eu nem sabia foram-se fazendo pelas minhas mãos, boca, língua e pele. O resto, ela mostrava. Lição aprendida diretamente dos demônios: cada carícia, cada som de amor que esquentava o desejo, cada ...ai, ai,ai,ai, ai!
Só de lembrar dessa que para mim era todas mulheres do mundo em uma só  ...
Lilith- Então por que me deixou?
Os dois se olham. Silêncio. Lilith se vai.

"Em alguma margem, no rio", que estreou no Ágora , em 2002, foi pro TUSP em 2009, para o SESC Paulista, em 2010 e também participou do Circuito Cultural Paulista, neste mesmo ano, rodando por cidades do interior e litoral do estado.

“Em alguma margem, no rio”

  De Viviane Dias


Escuro.
Sons do rio.
A luz é acesa, revela um homem em um barquinho.
Escuro.

Quando a luz é acesa novamente, o barco está preso num tronco de árvore.
Homem tenta se soltar, não consegue, fica irritado.
Ele tenta se desvencilhar do tronco com cada vez mais força. Não consegue. Na confusão da impaciência e da raiva, perde seu chapéu no rio. À medida que vê seus esforços inúteis, sua irritação cresce.

- AHHHHHHHHHHHHHHHH!
( Volta-se irritado para o tronco, tentando soltar-se):
- Tronco Maldito, Maldito Pau, Desconjurado, esconjuro Tronco do Demo, do Capeta, Satanás, O Arrenegado, o Cão!

O Caramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé de Pato, o Sujo, .....o Homem, ...o Tisnado, o... Coxo, o... Temba, o Azarape, o Coisa Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho!
-O Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que Diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem-Gracejos!
-Ah!
Cai, exausto.
Acorda com o sol que brilha muito forte. É meio-dia (de sol de sertão). Constata que continua preso. Olha para o tronco, para o rio. Detém-se, observando o reflexo do tronco no rio, que assemelha-se à esfinge. Volta a olhar o tronco, o rio. Repete várias vezes o movimento, inconformado. (Está um pouco febril).
- Tempo aqui, nesse sol danado de quente que cozinha nossos miolos que até já penso doideiras. Ô Pau maldito, você tá trocando de forma, é? É esse sol atrapalhando minhas idéias! A cegueira de volta?
Mas que tronco na água tem pata de touro, Pau do Cão! E asa de pássaro grande e corpo de gato e cabeça de mulher! (olha com cuidado) Mas é a febre ou ...é o meu rosto esse que você mostra?! ( desvia-se para fora do raio da imagem do tronco e apavora-se, percebendo que seu reflexo não está no rio ) E cadê minha cara, Ô Pau, que é a única coisa de minha que sobra nesse riozão de Deus! Roubou para si, o Tronco! 
Só o que não muda é a teimosia - ô Pau Teimoso - de me prender aqui!
- Cabeça fraca, cabeça mole, cabeça que não lembra. Lembra, lembra! Velho que me larga em hora assim! Onde é que eu ouvi a estória igual? Destino desse, nesse-mundo-perigoso-que-tudo- repete - sempre - que-nem-essa-água-que-engole-e-devolve-desde-o-começo - O Tempo - só-pra-atazanar-a-gente-no-repetido-mesmo-das-iguais-estórias!  Lembra!!!
(Sons do rio)
Joca Saturnino, que contou um dia...Um bicho estranho... estranho que só larga da gente depois que entende... Que era Bafomé, que tudo quer saber, tim-tim-por-tim-tim, tudo do homem que encontra! Quer saber minha estória, é? Será que é pra melhor roubar? Ô Pau ladrão, já pegou meu rosto pra si e agora quer os passados! Quer ser eu, é? É a mando do velho, não é? De danado de difícil de dia depois d’outro, sempre tudo a perder!
Tenta soltar-se novamente, com muita raiva.
Não consegue.
- Ahhh!
(suspira)- O Adversário!
(Senta-se, tempo, som do rio. Levanta-se.)
Se não tem acordo, faço acordo! É pacto: mas depois você me livra, hein? Me deixa! E ademais, a lembrança não pára de teimar mesmo. E de mais a mais, ainda que você me roube de mim, vejo os positivos. Melhor que me deixa sem nada, sem trabalho demais de pesado pra canoa, tão inha, fraquinha, que só pouquinho agüenta. Aí posso seguir contente, rio abaixo, rio acima, o rio.
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Tinha casa, família, paz, sossego, pra quê, ô velho, sempre tudo me tirando?
Começa da onde que você quer, ô Tronco, que tem tanta lembrança que fica difícil ser ordeiro. (Aos poucos, imagem do tronco refletido na água vai se assemelhando a uma imagem de mulher) Homem benze-se novamente. - Arre, Pau Satã, que muda desse jeito desavergonhado. Até inibe um! Pau Mandão! Pois se é por ela que tu quer começo .... Se essa doidera não foi mesmo desde sempre o começo.
Juçara, Juçara, sentido de tudo, desd’a visão, primeira, na festa de Montes Claros. De Juçara de vestido vermelho, dos olhos pretos que iluminavam a noite. De olhar pela primeira vez já endoidei de vontades.
(Sons de festa de rua, rio atrás.)
Jagunço cansado de viagem, sempre só o que pensa é mulher. Durante não pode, que enfraquece! Mas depois, ia é correndo pra casa de Dona Doralda, das melhores coisas da vida. Mas aí a Juçara, assim, sem avisar e um se esquece de tudo. (Adquire outra postura. Visivelmente anos mais moço).
- De onde você é? Bonita demais ! Quer casar comigo? - E ela riu risadas de dentes branquinhos.
-Não faz graça não, moço, que eu não posso...
Maria Tebona, agora
Digo uma graça contigo:
A reima do bicho-home
Nasce da maçã do figo,
A rêima do bicho-fême
Eu sei, mas porém não digo.
- E por que não? Não gostou de mim, é?
- Gostei demais, bem. Mas é que já tenho dono...
Destino chegando de mansinho, me agarrou de um salto à minha frente. Justo Jacinto, amigo do peito, de tantas valentias, dos perigos da vida .... Juçara de Jacinto? Nunca que me esqueço do estranho daquilo tudo.
- Que que você tem aí escondido que ninguém pode saber? Ódios!
Jacinto montando o cavalo, tão cheio de si, de fama de tiro certeiro correndo o sertão!
Jacinto que tanta pressa punha - era sua última missão no bando - ia parar em Montes Claros. Casar! Casamento de mocidade prometido...minha Juçara? Jacinto, o companheiro que tudo tinha me ensinado, mesmo um pai! Juçara de ... Jacinto? Nunca que me esqueço do estranho daquilo tudo.
- Que que você tem aí escondido que ninguém pode saber? Ódio?
(Sons do rio.)
E o que eu já sabia sem nem querer tomar conhecimento, pulou de um salto à minha frente: que Jacinto no bando as grandezas de mim roubava! E por que do desacordo agora, caminho livre, sem Jacinto por perto, tudo bom, na vontade do destino?
( como se visse a mulher, que some no instante seguinte) Juçara!
( O sol forte na cabeça)
O ódio, Jacinto! De você sempre com o passo certeiro, o riso confiante. Achando era bom que a gente travava conhecimento. Jacinto que nunca de nada desconfiou, de tão bom que maldades não via no mundo, não pensava.
Aiiiii!  Me perdoa Jacinto, que meu peso já nem mais cabe nessa canoa. Sai Jacinto, me deixa, Jacinto, que tu já se foi, foi pro inferno, de onde nunca devia de ter saído pra emporcalhar Juçara. Jacinto roçando, cheirando, mãos em ... Juçara. Suor pingado e misturado com dela, quantos vezes deitaram? Juçara - minha Juçara - e o porco do Jacinto! Agora você me aparece como deve de ter sempre sido - imundo - que de tempos de amizade antiga não via direito. Que nunca reparei tuas costas tão largas, Jacinto, mãos grandes demais. E já me dava era raiva cada vez que você pegava o cavalo e andava tão cheio de si, de fama de tiro certeiro correndo o sertão. Aiiiiiii, Jacinto que só pensava em ser melhor que você, o jagunço mais acertado, o mais perigoso, o de por mais medo. Aiiiiiiii Jacinto, que só queria era te matar!
Quanta doideira um homem não faz! E não percebia que eu mesmo só ia me encontrar lá na frente, tudo comigo, no desacordo de agora...
Você que é tronco, pode ser difícil de entender encanto de mulher como Juçara, que parece que já nasceu pra gente, desde o começo, que tudo fica tão certo... E quando um tem certeza, aqui, dentro do peito, que encontrou, mulher que só dá vontade de andar costurado tudo, pernas, braços , mesmo peito, prá não se perder mais, nunca mais...
( Sons do rio)
E eu trabalhei duro, anos no bando. Só pensava em voltar pra Montes Claros, ser pra ela, matar... ele!
(Sons do rio)

Eu andava, andava na frente de mim mesmo. Só via era o barulho de meus passos e ouvia o pé depois do outro. Voltar pra Montes Claros - pra ela - sem ele. O dentro em desordem, não parar, continuar andando. Anos no bando. Continuar andando, sentido único, idéias fixas, certezas. E eu não percebia que eu mesmo só ia me encontar lá na frente, sempre tudo existido, no desacordo de agora! Era homem não era? Pisando na sombra de meu futuro, sempre em frente, eu de costas comigo na frente, apressando o ritmo e o corpo pendido pra frente, importâncias! Jacinto roçando, cheirando, mãos sem não no corpo de Juçara. Corpo pendido pra frente, tudo para ganhar tempo. O tempo? Quase sete anos! Quem é que nunca quis sumir nesse mundo afora, sem destino? Juçara, minha Juçara e o porco do Jacinto!
- Ahhhhhhhhhh! 
E eu já o grande do bando, sete anos passados, alcunha Serpente, de novo batismo, melhor jagunço desse sertão sem fim. Montes Claros era meu destino agora. Te odeio, Jacinto!

-Te odeio, Jacinto! (vira-se)
-Jacinto, amigo querido, de tantas valentias. Quanto tempo! E...Juçara?
-Ah! (alívio) Olha em volta. - Casa bonita a sua. Bem se vê que Juçara....é esse o nome dela? Bem se vê que Juçara é dona-de-casa caprichosa. 
Volta-se:
-Saudades, você? Figura sossego! Bem casado, casa bonita, mulher...saudades de quê?
De vida sem certeza. Só quanto um perde é que sabe a falta que faz.
-Ah, pois eu não sei então é nunca. Sempre fui livre, dono de meu destino. Prisão é que num é comigo!
( à parte, mais velho) - No duro, no duro, na hora dava era a vida pra trocar de destino. Era a mãe que já me chamava? Nem nunca vou saber!
(delírios sol, balançando a canoa) Em Salomão bati, de raiva, de medo, perdia o poder. Tudo perdia, assim? Perdi? Cadê o velho, que tanto tinha feito pra reinar, até minha visão tirou, por que agora me deixava? Rio! Ô Rio, por que essa miúdeza de homem não sai de mim? Jacinto! Trairagens!

Você agora é chefe de bando, homem temido...Veja amigo, seja sincero....eu envelheci? E os companheiros, o que dizem de mim agora? Lembram ainda? E...com respeito? Ou sou piada, que nem Zé do Mestre, quando assentou? Dizem que eu perdi a coragem, dizem? Recordam de minhas valentias?
....
- Tudo sabe, né, Jacinto, pessoal é tudo brincalhão.
Nem sei que astúcia me dava na hora de falar tudo ao contrário, só pra atazanar Jacinto. Será que na hora a idéia da emboscada já existia? Nem nunca vou saber. Parecia era Lúcifer falando por mim.
- Ah, isso que não! Sete anos fora de lida, jagunço já perdeu o jeito. Não dá não. Vê se tem graça, acompanhar missão só para voltar mais satisfeito pra vida de todo dia...levar homem que já perdeu a mão é risco pros outros do bando!
-Sei não, Jacinto...
-Um tiro mais certo, não existe? Olhe, Jacinto...
-Jacinto...
...
-Jacinto, deixe de loucura homem, que nós somos é amigos. E nem não fica bem, eu, chefe de bando, no vigor da força, me bater com homem....ve...casado...só porque você faz questão de prova...Endoideceu?
Jacinto tão sem desconfiança, o bote da cobra-eu!
- Pois então, Jacinto, já que tu é que exige - ouça bem, tu é que quer, e eu sou teu amigo - proponho: semana que vem nós vamos guerrear uns soldados. E falta alguém, alguém para...ah, estou sendo doido que não se arrisca amigo assim. Ainda mais sem tempo de lida. Não! Você não seria capaz...
...
-É perigoso, a missão é arriscada, não pode.
....
-Não ...(olhando para baixo) que que é isso Jacinto, me pedir assim?
(movimento de puxar um homem ajoelhado no chão)
-TÁ BEM, JACINTO!

Eu andava, andava, andava na frente de mim mesmo. Só via era o barulho de meus passos e ouvia o pé depois doutro. Não parar, continuar andando, sentido único, idéia fixa. Certezas! Era homem, não era? Andava, e não via que eu mesmo só ia me encontrar lá na frente. Eu existia comigo, mas em desordem de agora, andando reto, sem me conhecer de costas. Pisando na sombra de meu futuro e o corpo pendido pra a frente, tudo para ganhar do tempo. Quem é que nunca se desembestou por esse mundo afora, sem destino? Ah, o destino! E ele foi chegando de mansinho, sem se fazer notar, e me pegou de um salto, como um bicho feroz à minha frente, sorrateiro igual onça e astuto que nem mulher.
(“Segunda voz” como uma “consciência-Juçara”)
- Juçara!
Queria era pedir pra não mandar Jacinto na frente de bando, guerrear os soldados?
-Sou chefe, posso!
Chefe dos Gerais, pleno de poderes, um homem, por isso...
-Sou chefe! Tudo posso!
E ela...(suspiro). -Peço que páre!
Nisso nem sei o que me deu, de tantas vontades guardadas, puxei Juçara pra mim. Era chefe, não era? E nãos não encontrei. Se ouvisse, sendo Juçara quem era, juro que parava. Mas ela queria, queria também. Tudo fluído, que nem esse rio que corre.
Juçara quente, o corpo de missa. Uma missa! Juçara nos dias, o filho. Meu filho... morto! O que não foi!AIIIIIIIIIII! Castigo meu, de mandar Jacinto em missão de morte certa, sem apoio, sem companheiros. Jacinto foi feliz - em tudo punha confiança - encontro de morte assassina. Se a culpa fosse dessas mãos, já tinha mandado cortar, tanto sofrimento, um filho sem vida. Mas a culpa era dessa aqui, da cabeça, que não se corta, mas que pesa no ombro de um peso pior que o peso do mundo.
- Juçara, a culpa não é minha, nosso filho nascendo morto. Não é tua. Mulher que age na inocência do corpo não tem culpa!
E cá dentro de mim, sabia que era Jacinto vingando, castigo de Deus ou do demo, ou ...? AH! Era um bicho diferente me fazendo perguntas que nunca tinha pensado.
-Amigo...na frente de bando?
-Ué, tu é que...
-Na frente? Sem companheiros?
- Se quiser...
- De jeito nenhum. Eu disse que posso é porque posso. De mais a mais, o chefe é tu, confio, sabe dos passos e mandos. Amigo, desculpe! Vou é sem medo!
-Te dou outro filho - Juçara - um rei! Vai ser rei, te prometo! A gente se casa, pra ontem. Esquece as tristezas, tudo fica pra trás. Largo a vida de jagunço. Te dou outro filho, pra hoje! Salomão nome dele. É pacto?
.....
E eu andava, sujeito desenfreado, deixando tudo pra trás. Largar tudo, pra longe de Montes Claros, de vida de jagunço, largar tudo, esquecer as estórias, pra onde ninguém sabia de nada. Serpente já não era, nem Reinaldo de batismo primeiro, era homem sem nada - sem casa, sem dinheiro, sem passado. Caminhando pra frente, mas andando de costas. De volta prá perto do rio, onde só o que o povo sabia era do sujeito novo calado, que só pra si as vontades de grandeza mostrava. Saí sem nada, voltava igual.
Bogagem! Que nunca se volta de verdade....E agora, nem mais sozinho não era. Tinha a Juçara do lado e um filho esperando sua hora. E promessas... e vontades novas de sossego, construir raiz, firmar estória. Alimentar a terra, tirar sustento que nem mãe ensinava, já que pai nem nunca mesmo conheci e já diferença não fazia- não lembrar... Jacin...- nunca lembrar.
Cabras pro leite. Uma casa de farinha. O que plantar, colher. O que alimentar, gozar. Homem positivo, ordeiro, cumpridor. Queria a mansidão, mudar de pele. Os filhos - Salomão, Maria e Pedro- era Juçara quem regia. A casa também. Pacto nunca dito, trocávamos tudo. Cada um a si procurava na lida do outro.
(Silêncio, quebrado por suaves sons do rio).
(Lentamente) Era a vida madura. Já até rei tinha sido. Faltava então o quê?
(Outro ritmo)
Segue! Caminho da falta - fome de não sei o quê. Mas agora outros já tinha, não, não podia responder chamados. Era homem, canalhices! A terra me prendia, raízes-meus-pés, sossego! (Ri). A vida não num se importa. E assim, sem nem muito notar, rasteira do destino, mandei construir uma canoa: pau de vinhático, pequena, mal com a tabuinha de popa, pra caber justo o remador- um nasce só, não é mesmo? Escolhida forte, boa pra durar anos - o tempo (ri, o sol sempre na cabeça).
Pra quê, ô Tronco? Nem eu sabia. Era uma idéia que minha cabeça nem coragem de completar a forma tinha. Sabedorias! Mas acho que foi coisa é dele, o velho eu, estranho dentro de mim.
(Pausa. Sons do rio)
Nem sei direito foi quando que ele começou a aparecer, mas ver mesmo foi o dia d’eu sozinho na mata -o primeiro encontro. Um sol que nem esse, ardendo na cabeça, agora se punha. Lua Cheia, dona do céu, surgindo. As Belezas! Tudo de tanto que meu deu até vontade de ajoelhar. (Movimento). E quando levantei a cabeça, já era um outro. Um homem muito velho na astúcia e muito novo de energia, de repente tomava conta de mim. Espíritos? Não, não era não, é certeza! Era eu, um outro eu que nem sei como cismou de me aparecer de repente. Um eu que sabia tudo da floresta, e que ouvia o chamado do rio. De início apreciava, aquele eu dentro de mim, enorme, enquanto o eu outro, o que já foi jagunço e agora pai de família, homem que nasceu de mulher e viveu vida de dia depois doutro, diminuia.
Não pense que é a febre não, ô Tronco, mais acordado que nunca estava. Imaginações? Tudo ao mesmo tempo existe.
Um outro eu dentro de mim, velho de sabedorias e moço de energias, nem nunca tinha ouvido falar. E velho eu assoprava: se nunca ouviu é porque é destino seu, só seu! Destino chegando sorrateiro de novo, pulando à minha frente... Mas porque nunca doutor ou padre nenhum avisou? Doideiras? “ Nem Deus às vezes conhece o que homem experimenta. As coisas começam a existir quando um imagina”, o velho eu soprava! A cabeça - ô Tronco - as idéias, nada tem de mais livre. É livre, livre, a chave do mundo! Minha cabeça, águia, que nem asas suas, agora guiava.
(gritando)
-Asas de Águia, voa alto, traz coisas novas pra cá.
(satisfeito)Grandeza de todos!
Mas aí, o medo do cão - tronco maldito - dessas coisas que homem nenhum não domina, magias de vida! Expulsei o velho - assustado - vomitei do meu corpo o estranho e voltei pra casa. Não queria, tinha tempo, não tinha?
Tempo eu tinha, não tinha? (Num movimento da canoa, barco se prende ainda mais) Me larga, tronco maldito! Tenho que ir, encontrar o mar! Me deixa! (não consegue soltar-se) Ô Pau danado de teimoso! Isso nem coisa do velho mais é. É de Salomão, já sei, que empaca numa idéia e não tem quem aconselhe! Raivas! Em Salomão bati, de raiva, de medo. Perdia o poder? A tudo perdi, assim, preso nesse pau do cão? Pau que já nem mais meu rosto tem, bicho sem forma, de boca enorme pra tudo engolir. Comigo que não! Guarde seus apetites pra outros, Pau de Satã! De danado de difícil de dia depois doutro, sempre tudo a perder! É mesmo dia depois doutro ou é sempre o mesmo dia? Toda a tristeza...a mesma? Cadê o velho, que me larga em hora assim? É o dia terminando? A cegueira de volta? É que tinha casa, família, tudo tão bom, sossego...Não podia ficar respondendo chamados!
Me diz então, o Tronco: como um podia se esquecer de si, viver na lida diária sem nem se importar? Esquecido de si pra outros eus entrarem? Grande demais para mim! Não podia! Mas o pior de uma idéia, é que depois que se tem, nada mais volta a ser como antes, um não mais se conforma, eu devia saber. Mas coragem não tinha. Tinha tempo, não tinha?
E trabalhava duro, sem mais nem pensar, voltar pra mata não ia.
Arava, plantava, colhia, limpava, moía, embalava, vendia. Arava, plantava, colhia, limpava, vendia. Arava, plantava,colhia. Nem queria mais pensar. Tinha mulher e filhos, não podia. Não podia! O mundo mais próximo de mim, cada vez mais. Achava era normal no começo, perdia já o jeito de levantar a cabeça e olhar pra longe.
O passado volta? Trairagem! Dia sem luz, homem grande, um borrão de Satã avançando pra mim. Ataques? Bandidagem? Eu jagunço já não era! Levantei a foice, era um ataque! Salomão gritou assustado (risada). Achava que o pai tinha enlouquecido. Mas não, não era dessa loucura que eu sofria, não. Era doença, cegueira adiantada, me pegando tão desprevinido de cedo que nem não percebi até quase o escuro tomar conta de tudo. Não reconheci meu filho! (risada)
Pausa.
Sons do rio.
-Ô natureza!
Pausa.
-Ô natureza!
Sons do rio.
(Desenha movimentos de brincar com um pássaro que se aproxima da canoa.)
E desse mundo cada vez mais próximo, mais perto de mim, fui vendo melhor. Podia sim! Um leão grande que nem esse corpo teu - ô Tronco - rugindo sem nem se importar, já me dava a firmeza no chão. Velho, parceria proponho! Aos poucos, parei. E quando parei, as coisas pararam de acontecer. E eu comecei acontecer nas coisas. E eu não parei de acontecer nas coisas. Com paciência, o velho tomava conta dos dias. Eram as coisas que perdiam sentido, sumindo lá embaixo?
Eu, o Reinaldo, só observava. De vez em quando, reinava. Na hora de amansar um cavalo, construir cisterna pra casa, dirigir carro, era a ele - Reinaldo - que chamava. No demais a mais, era o outro, tomando espaço, crescendo dentro de mim. De peito aberto eu aprendia a viver assim, acima de mim mesmo, fora e dentro. O sim, tão livre que as regras nem mais sentido faziam, podia deixar velho tranqüilo, sem nem importar.
( Delírios de sol retornando, num suspiro) Aiiiiiiii! Danado de difícil o dia depois doutro, sempre tudo a perder! E se o sol não voltar de manhã? (balança a canoa )- Jacinto te odeio, meu ódio pulando na minha frente, sorrateiro, rápido que nem uma onça e astuto igual mulher. A Lua ajudando, Serpente escondida avança. As vontades de Maria. Salomão, minha casa, queria largar. Juçara em desacordo, Pedro calava. Tempestades! Em Salomão bati, de raiva, de medo, perdia o poder. Tudo perdia, assim? Perdi? Cadê o velho, que tanto tinha feito pra reinar, até minha visão tirou, por que agora me deixava? Corri pro rio, assustado com a miúdeza de homem que não saia de mim. Dias olhando a correnteza, o fluxo de sempre do rio. Cadê você, ô velho? É o tronco maldito que o sossego me tira? Velho me abraça, me dá o colo de pai...que nunca... que nem sei ainda porque essas coisas ainda cismam de voltar! Tinha enterrado os mortos, Tronco do demo, que tudo me traz. Abraço de velho forte me ensina!
(risada) E velho me ensinou o que eu ainda não sabia. Segredos de rio. Liberdade corre, nunca se aprisiona. Um fala sou livre e já se perdeu.
Vida de fluxo no rio de todos!
Lembrei da canoa há tanto tempo pronta, sem que nem pensasse mais. Já sabia então o como usar. Uma vez jagunço guerreiro, sempre na vida a brigar. (barco lentamente se afasta do tronco) E me meti nessas águas, rio acima, rio abaixo, Eu, o rio.

















   
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