“Em alguma margem, no rio”
De Viviane Dias
Escuro.
Sons do rio.
A luz é acesa, revela um homem em um barquinho.
Escuro.
Quando a luz é acesa novamente, o barco está preso num tronco de árvore.
Homem tenta se soltar, não consegue, fica irritado.
Ele tenta se desvencilhar do tronco com cada vez mais força. Não consegue. Na confusão da impaciência e da raiva, perde seu chapéu no rio. À medida que vê seus esforços inúteis, sua irritação cresce.
- AHHHHHHHHHHHHHHHH!
( Volta-se irritado para o tronco, tentando soltar-se):
- Tronco Maldito, Maldito Pau, Desconjurado, esconjuro Tronco do Demo, do Capeta, Satanás, O Arrenegado, o Cão!
O Caramulhão, o Indivíduo, o Galhardo, o Pé de Pato, o Sujo, .....o Homem, ...o Tisnado, o... Coxo, o... Temba, o Azarape, o Coisa Ruim, o Mafarro, o Pé-Preto, o Canho!
-O Duba-Dubá, o Rapaz, o Tristonho, o Não-sei-que Diga, O-que-nunca-se-ri, o Sem-Gracejos!
-Ah!
Cai, exausto.
Acorda com o sol que brilha muito forte. É meio-dia (de sol de sertão). Constata que continua preso. Olha para o tronco, para o rio. Detém-se, observando o reflexo do tronco no rio, que assemelha-se à esfinge. Volta a olhar o tronco, o rio. Repete várias vezes o movimento, inconformado. (Está um pouco febril).
- Tempo aqui, nesse sol danado de quente que cozinha nossos miolos que até já penso doideiras. Ô Pau maldito, você tá trocando de forma, é? É esse sol atrapalhando minhas idéias! A cegueira de volta?
Mas que tronco na água tem pata de touro, Pau do Cão! E asa de pássaro grande e corpo de gato e cabeça de mulher! (olha com cuidado) Mas é a febre ou ...é o meu rosto esse que você mostra?! ( desvia-se para fora do raio da imagem do tronco e apavora-se, percebendo que seu reflexo não está no rio ) E cadê minha cara, Ô Pau, que é a única coisa de minha que sobra nesse riozão de Deus! Roubou para si, o Tronco!
Só o que não muda é a teimosia - ô Pau Teimoso - de me prender aqui!
Só o que não muda é a teimosia - ô Pau Teimoso - de me prender aqui!
- Cabeça fraca, cabeça mole, cabeça que não lembra. Lembra, lembra! Velho que me larga em hora assim! Onde é que eu ouvi a estória igual? Destino desse, nesse-mundo-perigoso-que-tudo- repete - sempre - que-nem-essa-água-que-engole-e-devolve-desde-o-começo - O Tempo - só-pra-atazanar-a-gente-no-repetido-mesmo-das-iguais-estórias! Lembra!!!
(Sons do rio)
Joca Saturnino, que contou um dia...Um bicho estranho... estranho que só larga da gente depois que entende... Que era Bafomé, que tudo quer saber, tim-tim-por-tim-tim, tudo do homem que encontra! Quer saber minha estória, é? Será que é pra melhor roubar? Ô Pau ladrão, já pegou meu rosto pra si e agora quer os passados! Quer ser eu, é? É a mando do velho, não é? De danado de difícil de dia depois d’outro, sempre tudo a perder!
Tenta soltar-se novamente, com muita raiva.
Não consegue.
- Ahhh!
(suspira)- O Adversário!
(Senta-se, tempo, som do rio. Levanta-se.)
Se não tem acordo, faço acordo! É pacto: mas depois você me livra, hein? Me deixa! E ademais, a lembrança não pára de teimar mesmo. E de mais a mais, ainda que você me roube de mim, vejo os positivos. Melhor que me deixa sem nada, sem trabalho demais de pesado pra canoa, tão inha, fraquinha, que só pouquinho agüenta. Aí posso seguir contente, rio abaixo, rio acima, o rio.
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Tinha casa, família, paz, sossego, pra quê, ô velho, sempre tudo me tirando?
Começa da onde que você quer, ô Tronco, que tem tanta lembrança que fica difícil ser ordeiro. (Aos poucos, imagem do tronco refletido na água vai se assemelhando a uma imagem de mulher) Homem benze-se novamente. - Arre, Pau Satã, que muda desse jeito desavergonhado. Até inibe um! Pau Mandão! Pois se é por ela que tu quer começo .... Se essa doidera não foi mesmo desde sempre o começo.
Juçara, Juçara, sentido de tudo, desd’a visão, primeira, na festa de Montes Claros. De Juçara de vestido vermelho, dos olhos pretos que iluminavam a noite. De olhar pela primeira vez já endoidei de vontades.
(Sons de festa de rua, rio atrás.)
Jagunço cansado de viagem, sempre só o que pensa é mulher. Durante não pode, que enfraquece! Mas depois, ia é correndo pra casa de Dona Doralda, das melhores coisas da vida. Mas aí a Juçara, assim, sem avisar e um se esquece de tudo. (Adquire outra postura. Visivelmente anos mais moço).
- De onde você é? Bonita demais ! Quer casar comigo? - E ela riu risadas de dentes branquinhos.
-Não faz graça não, moço, que eu não posso...
Maria Tebona, agora
Digo uma graça contigo:
A reima do bicho-home
Nasce da maçã do figo,
A rêima do bicho-fême
Eu sei, mas porém não digo.
- E por que não? Não gostou de mim, é?
- Gostei demais, bem. Mas é que já tenho dono...
Destino chegando de mansinho, me agarrou de um salto à minha frente. Justo Jacinto, amigo do peito, de tantas valentias, dos perigos da vida .... Juçara de Jacinto? Nunca que me esqueço do estranho daquilo tudo.
- Que que você tem aí escondido que ninguém pode saber? Ódios!
Jacinto montando o cavalo, tão cheio de si, de fama de tiro certeiro correndo o sertão!
Jacinto que tanta pressa punha - era sua última missão no bando - ia parar em Montes Claros. Casar! Casamento de mocidade prometido...minha Juçara? Jacinto, o companheiro que tudo tinha me ensinado, mesmo um pai! Juçara de ... Jacinto? Nunca que me esqueço do estranho daquilo tudo.
- Que que você tem aí escondido que ninguém pode saber? Ódio?
(Sons do rio.)
E o que eu já sabia sem nem querer tomar conhecimento, pulou de um salto à minha frente: que Jacinto no bando as grandezas de mim roubava! E por que do desacordo agora, caminho livre, sem Jacinto por perto, tudo bom, na vontade do destino?
( como se visse a mulher, que some no instante seguinte) Juçara!
( O sol forte na cabeça)
O ódio, Jacinto! De você sempre com o passo certeiro, o riso confiante. Achando era bom que a gente travava conhecimento. Jacinto que nunca de nada desconfiou, de tão bom que maldades não via no mundo, não pensava.
Aiiiii! Me perdoa Jacinto, que meu peso já nem mais cabe nessa canoa. Sai Jacinto, me deixa, Jacinto, que tu já se foi, foi pro inferno, de onde nunca devia de ter saído pra emporcalhar Juçara. Jacinto roçando, cheirando, mãos em ... Juçara. Suor pingado e misturado com dela, quantos vezes deitaram? Juçara - minha Juçara - e o porco do Jacinto! Agora você me aparece como deve de ter sempre sido - imundo - que de tempos de amizade antiga não via direito. Que nunca reparei tuas costas tão largas, Jacinto, mãos grandes demais. E já me dava era raiva cada vez que você pegava o cavalo e andava tão cheio de si, de fama de tiro certeiro correndo o sertão. Aiiiiiii, Jacinto que só pensava em ser melhor que você, o jagunço mais acertado, o mais perigoso, o de por mais medo. Aiiiiiiii Jacinto, que só queria era te matar!
Quanta doideira um homem não faz! E não percebia que eu mesmo só ia me encontrar lá na frente, tudo comigo, no desacordo de agora...
Você que é tronco, pode ser difícil de entender encanto de mulher como Juçara, que parece que já nasceu pra gente, desde o começo, que tudo fica tão certo... E quando um tem certeza, aqui, dentro do peito, que encontrou, mulher que só dá vontade de andar costurado tudo, pernas, braços , mesmo peito, prá não se perder mais, nunca mais...
( Sons do rio)
E eu trabalhei duro, anos no bando. Só pensava em voltar pra Montes Claros, ser pra ela, matar... ele!
(Sons do rio)
Eu andava, andava na frente de mim mesmo. Só via era o barulho de meus passos e ouvia o pé depois do outro. Voltar pra Montes Claros - pra ela - sem ele. O dentro em desordem, não parar, continuar andando. Anos no bando. Continuar andando, sentido único, idéias fixas, certezas. E eu não percebia que eu mesmo só ia me encontar lá na frente, sempre tudo existido, no desacordo de agora! Era homem não era? Pisando na sombra de meu futuro, sempre em frente, eu de costas comigo na frente, apressando o ritmo e o corpo pendido pra frente, importâncias! Jacinto roçando, cheirando, mãos sem não no corpo de Juçara. Corpo pendido pra frente, tudo para ganhar tempo. O tempo? Quase sete anos! Quem é que nunca quis sumir nesse mundo afora, sem destino? Juçara, minha Juçara e o porco do Jacinto!
- Ahhhhhhhhhh!
E eu já o grande do bando, sete anos passados, alcunha Serpente, de novo batismo, melhor jagunço desse sertão sem fim. Montes Claros era meu destino agora. Te odeio, Jacinto!
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