domingo, 3 de abril de 2011

Trecho do Mestres do Jogo em cartaz no SESC Consolação e no Teatro Commune, em 2010


Caio lê um livro. Joana está na cozinha.

Caio - Ainda demora?
Joana Como você é impaciente, meu poeta! Vai acabar comendo cru!
Caio – Poeta... (lê alto seu livro)
- Tudo está em levar a termo e, depois, dar à luz. “
Joana Eu gostei!
Caio ri – Não é meu... É Rilke! ( vai para a cozinha)
Caio – O cheiro está bom! (Abre a tampa e vai beliscar.)
Joana Não!
Caio – Tudo bem...eu também não te deixo ler nada meu enquanto não está pronto....
Joana Nem sempre eu fui assim...mas acontece que um belo dia, eu me dei conta que quando eu cozinho, eu transformo a matéria...
Caio – como um mago, um alquimista...uma bruxa!
Joana ou um artista!
Joana O fogo desencadeia, precipita, acelera a modificação. Ele também me aquece e eu sinto muito calor. As cozinhas são lugares tão quentes...
Raízes, sementes, folhas, cogumelo, a carne, a fruta.  Minha cozinha é farta e generosa, você pode ver. Daqui eu tiro tudo o que preciso. Eu sou uma pessoa muito simples mesmo. E que gosta de coisas simples. É que foi no dia-a-dia que eu aprendi o que realmente importa.

Meus instrumentos são mesmo simples: colheres, panelas, potes, vasos. Que comportam, que guardam, que suportam o calor...para que a ...magia... seja feita.
Caio - A magia!
Joana Ou você duvida da minha magia quando... o trigo... se transforma em pão...
Caio – a fruta em geléia...
Joana o vinho, em vinagre...
Os dois riem.
Joana Um bom alimento se faz com muito cuidado. Isso porque a massa pode desandar a qualquer momento. O fato de você ter feito um pão maravilhoso um dia não quer dizer nada. Se no dia seguinte você não trabalhar direitinho, o pão pode ficar sem gosto, insosso e comida assim ninguém gosta. Por isto é preciso muita atenção. (Caio aproxima-se dela) Estar completamente presente naquilo que se faz. Quando eu abro a massa, eu sinto que meu próprio corpo também se abre. ( Caio aproxima-se mais e tenta tocá-la) .

Joana se afasta do toque, de forma gentil.

Caio ( se desculpando) – As cozinhas são lugares quentes!
Joana sorri – ...mas quando o alimento está pronto, tudo o que eu desejo é que ele possa ser servido, provado, mordido, engolido. Que invada as entranhas de quem o receba e ali se dissolva, se transforme novamente, torne-se um com aquele que o tomou. Uma fusão perfeita. Eu alimento. Ah, se eu pudesse descobrir a receita perfeita. Que das minhas panelas, do fogo de meu fogão, dos elementos de minha cozinha nascesse uma comida que provocasse um deleite tão especial naquele que a experimenta que toda a dor fosse esquecida. Um prazer tão intenso que pudesse tornar toda ferida risível. Um alimento tão gostoso que transportasse, como uma ponte, aquele que o recebe diretamente às delícias do paraíso. Eu estou falando de coisas tão simples. ( Morde uma maçã e a oferece à Caio). Quer provar?

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